Maria Lopes e Temas Transversais
Imperadores, inovação social e economia solidária
Cabe aos movimentos sociais assumirem a economia solidária como forma de organização da economia e modo de vida e construírem uma grande rede
Henri Mendras e Michel Forsé, no livro Le Changement Social (“Mudança Social”), contam que “segundo a tradição, o moinho de água foi inventado no Império Romano por um homem escravizado que apresentou a sua descoberta ao imperador, que o felicitou, libertou e recomendou-lhe que não falasse para ninguém da sua invenção, pois a sua adoção privaria os escravos de muitas das suas tarefas. E demorou quase um milênio para que os moinhos se multiplicassem ao longo dos cursos de água. Uma inovação só se espalha numa sociedade quando as condições sociais lhe são favoráveis e o estado das forças produtivas é propício à sua utilização”.
James W. Avault Jr., no livro Fundamentals of Aquaculture. A stepe-by-step guide to commercial aquaculture (“Fundamentos da Aquicultura. Um guia passo a passo para aquicultura comercial”), relatou que “na China, durante a Dinastia Tang, 618 – 907 d.C., a criação da carpa comum foi proibida, pois seu nome ‘Li’ parecia com o nome do Imperador, ‘Lee’, que era considerado sagrado e era inadmissível que ‘Lee’ fosse criado e, posteriormente, comido. Assim, os piscicultores passaram a coletar nos rios, alevinos de outras espécies de carpas e não os separavam para o povoamento em viveiros. Essas espécies tinham hábitos alimentares diferentes, filtravam fito e zooplâncton. O sistema de policultivo praticado atualmente, provavelmente começou nessa época, sendo aperfeiçoado ao longo do tempo. Entretanto, originalmente, o fator indutor da mudança, ou seja, da adoção do policultivo, não foi a busca dos criadores por espécies com hábitos alimentares diversos para aumentar a produtividade dos viveiros, mas o comportamento do imperador”.
As técnicas relatadas nos dois casos não foram criadas fora do contexto social e econômico. Não foram geradas por experts iluminados em estações de pesquisa descoladas da sociedade e posteriormente difundidas. Tratam-se de criações, respectivamente, por um trabalhador escravizado e agricultores familiares de acordo com as suas realidades, necessidades. Portanto, não se tratam de inovações difusionistas para um grupo privilegiado que poderia adotá-las devido a uma condição financeira privilegiada, como uma ou duas empresas, por exemplo. Essas inovações são resultado de um conjunto de atores em relação que, ao longo do tempo, constituíram uma rede sociotécnica que as viabilizaram para resolver problemas concretos. Eu as defino como inovações sociais.
Os dois relatos evidenciam a importância daqueles que detêm o poder político e econômico nos processos de viabilização de inovações. No primeiro caso, foi necessário o fim do Império Romano para que os moinhos fossem adotados. Objetivava-se a manutenção da escravidão e, além disso, um homem escravizado não podia jamais ter uma boa ideia, pois ser brilhante era considerada prerrogativa do imperador.
No segundo, o imperador impede uma prática cultural, a criação da carpa comum, e os criadores buscam uma solução que se caracteriza como inovação social. Importante ressaltar que, neste caso, não foi necessário o aporte de recursos financeiros para a sua consolidação. A descoberta do policultivo foi positiva e se espalhou pelo mundo, mas se trata de uma forma de produção de peixes que exigiu um longo tempo para se consolidar. A interrupção de um modelo e a emergência de outro até a sua consolidação certamente provocaram prejuízos a curto e médio prazos para os piscicultores chineses. Fica evidente o autoritarismo e a vaidade sem limites do imperador, a ponto de prejudicar uma comunidade.
A história está repleta de casos em que uma ideia, projeto ou invenção não se tornam uma inovação social devido ao impedimento para construção de redes por pessoas que detêm o poder político e econômico, o que provoca paralisia. Nestes casos, a inovação lesaria os seus interesses.
Bruno Latour e Michel Callon, principais elaboradores da sociologia da inovação ou sociologia da tradução, afirmam que “nenhum projeto se impõe por suas qualidades próprias, pois é uma rede sociotécnica integrada por diferentes atores que vai viabilizá-lo”. A referida rede é um espaço de cooperação. Caso o Estado não integre a rede, pode faltar pesquisa científica, atividades de formação, assessoramento permanente e recursos financeiros para implementação da inovação. Afinal, quem inova são os trabalhadores que, para isso, precisam de meios que devem ser disponibilizados pelos órgãos que têm como função a redistribuição.
É muito difícil encontrar um empreendimento econômico solidário ou rede de empreendimentos consolidados sem que tenham recebido algum apoio de uma instituição estatal, paraestatal e mesmo sindicatos ou igreja católica. Há alguns poucos “anarcocapitalistas” que se autointitulam militantes do movimento de economia solidária, que defendem a completa ausência do apoio estatal, como se as políticas públicas ferissem a autogestão dos empreendimentos. Obviamente que não são essas pessoas que têm necessidade de trabalho e renda, moram e lutam cotidianamente nas comunidades para construção de uma outra economia. Essa postura não se trata somente de equívoco, mas vincula-se a uma lógica individualista que objetiva a ocupação do papel que deveria ser do Estado.
O Estado exerce papel político e administrativo de organização da sociedade, mas também econômico com as ações de redistribuição de recursos e mesmo de comercialização de alguns produtos e prestação de serviços das empresas que não foram privatizadas. O robusto apoio a algumas atividades é evidente. Como exemplo pode-se citar o agronegócio, que somente pelo Plano Safra 2023/2024 abocanhou R$ 364,22 bilhões do governo federal, o que representa 27% a mais que o ano anterior. Além de se beneficiar por isenções fiscais e ter órgãos públicos que realizam pesquisas para o setor, como universidades, institutos de pesquisas estaduais e Embrapa. Assim, as inovações técnicas e organizacionais no agronegócio, sempre de caráter difusionista, podem se viabilizar, pois há uma rede coordenada para viabilizar a maximização do lucro, incluindo os órgãos públicos no apoio, que atua possibilitando o alcance deste objetivo.
A inovação social não deve ser entendida como uma invenção ou simples introdução de uma técnica após a sua difusão, mas como uma mudança construída coletivamente. A economia solidária, como forma associada de produção, consumo, prestação de serviços e organização das finanças, se enquadra neste conceito, pois se trata da mudança de uma economia baseada na heterogestão para uma economia fundamentada na autogestão, o que representa inserções na economia hegemônica.
Paul Singer, considerado o patrono da economia solidária no Brasil, afirmou que “a economia solidária é uma inovação social na sua origem e logo se tornou fonte de outras inovações sociais. Isso só acontece quando a inovação mãe é fecunda e seus princípios induzem a criação de mais inovações. No caso da economia solidária, a novidade está na solidariedade praticada na economia quando esta se encontra sob o domínio do capitalismo, cujo princípio reitor é a competição, encarada como o oposto da solidariedade”.
Com base na solidariedade em forma de reciprocidade, na convivência para fazer a gestão de uma cooperativa, associação ou grupo informal, as pessoas têm um aprendizado mútuo diário e constroem soluções para os diferentes problemas que enfrentam. No entanto, não se pode dispensar o apoio do poder público para viabilização das inovações sociais. O agronegócio, como afirmado, não dispensa.
Em relação ao governo federal, não se pode afirmar que existe um apoio expressivo quando se considera a economia solidária. A Senaes foi recriada em 2023 como Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária, após ser destruída pelos governos de Michel Temer e Bolsonaro, mas ainda se encontra em fase de reestruturação, com recursos limitados. Além disso, as Leis da Economia Solidária e do Cooperativismo que se encontram no Congresso Nacional representam um verdadeiro empecilho para a sua emergência e ampliação, pois obrigam os empreendimentos econômicos solidários a se vincularem a duas entidades privadas para receberem eventuais auxílios públicos. O objetivo, certamente, é cabrestear esses empreendimentos para viabilizar a existência de burocratas. Não se pode admitir que para construção de um projeto que objetiva uma economia autogestionária a lei que o regulamenta no âmbito federal seja elaborada de cima para baixo, com acordos realizados nos gabinetes de Brasília.
Quanto ao governo do estado de São Paulo, desde 2011 a Assembleia Legislativa aprovou a Lei da Economia Solidária e até hoje o seu conteúdo não foi implementado, apesar dos esforços feitos por integrantes do Fórum Paulista de Economia Solidária, inclusive se dispondo a atuar como consultores voluntários.
Em relação às prefeituras da Baixada Santista o quadro não é muito diferente. Atualmente, há quatro prefeituras que sequer possuem legislação que respalde e fomente a economia solidária. Três possuem o marco legal e não têm uma política pública de apoio, ou seja, a lei é ignorada. Há duas que possuem a legislação e desenvolvem parcialmente um projeto de apoio à economia solidária. Curiosamente algumas dessas prefeituras buscam o rótulo de cidade criativa. O que significa essa criatividade que se resume a reproduzir atividades que representam mais do mesmo com a oferta de cursinhos rápidos de formação superficial de mão de obra que obrigam as pessoas a acreditarem que podem competir sozinhas no mercado sendo empreendedoras de si mesmo ou para, no máximo, obterem um subemprego?
No entanto, no governo estadual e em quase todas as prefeituras da Baixada Santista há servidores que, por iniciativa própria, identificação com o propósito, apoiam a economia solidária. Assim, algumas iniciativas são viabilizadas, mas sem que sejam resultado de uma política pública.
Considerando o território nacional, pode-se concluir que o Estado não está inserido nas redes que constroem a economia solidária, o que limita a emergência de inovações com base na formação e organização dos trabalhadores. Há exceções, como o estado da Bahia e universidades que desenvolvem projetos de incubação de empreendimentos econômicos solidários. Em São Paulo, há prefeituras como Araraquara (ver aqui) e Diadema que se tornaram referências por implementarem políticas públicas de apoio e fomento à economia solidária.
Existem na Baixada Santista grupos que atuam independentemente do Estado e lutam duramente para sobreviver. Pode-se citar as cooperativas de catadores de materiais recicláveis que nada recebem de prefeituras pelos serviços prestados à sociedade, o que é flagrante falta de cumprimento da lei que obriga que sejam contratadas pelas prefeituras. Tratamento diferente é dado às empresas capitalistas, que são remuneradas para fazerem o que fazem as cooperativas. Há grupos de agricultores familiares, de consumo de alimentos orgânicos, de prestação de serviços, inclusive na área da cultura, que não possuem qualquer apoio. O quadro piora se considerarmos as pessoas que querem ter seus empreendimentos econômicos solidários e não acessam recurso algum simplesmente por não existirem políticas públicas de apoio ao trabalho associado.
Dessa forma, as empresas que têm o objetivo da maximização do lucro e geram precarização do trabalho, como Uber, iFood e Terrracom, por exemplo, continuam a ser privilegiadas e a maioria da população em situação de pobreza.
Estamos no século XXI, com necessidade de geração de trabalho e renda e, mais que isso, com urgência de construção de uma outra economia, que respeite o ambiente para promover qualidade de vida e salvar o planeta da destruição por meio da mutação climática. No entanto, de forma geral, o Estado atua como atuaram os imperadores de Roma e da China citados no início do texto.
Cabe aos movimentos sociais assumirem a economia solidária como forma de organização da economia e modo de vida e construírem uma grande rede, pelo fato de agregar todas as pautas: ambiental, raça, gênero, contra as desigualdades, segurança alimentar, emancipação pelo trabalho. Devem, ainda, disputar os recursos públicos para implementação das inovações sociais necessárias, exigir políticas públicas.
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